sábado, 5 de julho de 2014

Os Nomes das Coisas



Os Nomes das Coisas
Para Sophia de Mello Breyner Andresen


Os nomes das coisas
se inscrevem
reconditamente
num grande e pesado livro de couro escuro
letras pequeníssimas
da bula das bulas dum antigo elixir
inexprimíveis
sonho sem imagens
pena e tinta jamais percebidas.


Os nomes das coisas
cunhados pelas bocas anônimas
foram perdidos
na noite dos tempos invernais
de um país muito longe
sem história
por aquele que desconfia
nunca haver existido.

Os nomes das coisas
inserem-se misteriosamente
no casco interno das árvores
entre os seios fartos de uma moça
na noite do vôo de uma coruja 
desfazendo-se
no andar das nuvens
de um deus
que não se quer conhecido.

Os nomes das coisas
não possuem final ou meio
que a existência compreenda.
Ondas de sons
que vagueiam
no vácuo
formam o mar da palavra
uma palavra
oculta, impronunciável
A palavra
que se mata para alcançá-la
que faz morrer e enlouquecer
quem a ousa professar.


sábado, 4 de janeiro de 2014

Dois dos melhores poemas de Walt Whitman





                                          "Symbiosis", de Roberta Carvalho



PLENO DE VIDA AGORA

Pleno de vida agora, concreto, visível,
Eu, aos quarenta anos de idade e aos oitenta e três dos Estados Unidos,
A ti que viverás dentro de um século ou vários séculos mais,
A ti, que ainda não nasceste, me dirijo, procurando-te.

Quando leres isto, eu que era visível serei invisível,
Agora és tu, concreto, visível, aquele que me lê, aquele que me procura,
Imagino como serias feliz se eu estivesse a teu lado e fosse teu companheiro,
Sê tão feliz como se eu estivesse contigo. (Não penses que não estou agora junto a ti.)





VI UMA AZINHEIRA QUE CRESCIA NA LOUISIANA

Vi uma azinheira que crescia na Louisiana,
Aí estava, só, e o musgo pendia dos seus ramos,
Aí crescia, sem um companheiro, e oferecia alegres folhas verde-escuro,
E o seu aspeto rude, inflexível, robusto, fez-me pensar em mim,
Mas admirei-me que fosse capaz de dar folhas como essas, tão só que estava, sem um amigo junto a si: eu sabia que não podia fazer o mesmo,
Arranquei um pequeno ramo com algumas folhas e à volta entreteci um pouco de musgo,
E levei-o e coloquei-o bem à vista no meu quarto,
Não preciso dele para lembrar-me os amigos queridos,
(Pois sei que ultimamente quase só penso neles,)
Mas é para mim um símbolo curioso, faz-me pensar no amor viril;
Apesar disso, e embora a azinheira resplandeça na Louisiana, solitária na grande planície,
Oferecendo sempre alegres folhas, longe de um amigo ou de um amante,
Eu sei muito bem que não podia fazer o mesmo.



Tradução de Gentil Saraiva Junior.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A mais bela carta de amor já vista...

Carta de Lewis Carroll para sua pequena amiga Gertrude Chataway

Gertrude Chataway foi a mais importante criança que o escritor Lewis Carroll teve como amiga. O poema A caça ao Snark, inclusive, é dedicado a ela e aberto com um acróstico com seu nome. Biógrafos de Carroll, conhecido por escrever Alice no país das maravilhas, revelam que ele conheceu a garota quando ela tinha apenas 9 anos e que, desde então, os dois mantiveram uma amizade que se estendeu até a vida adulta. Meio estranho? Espere até ler a carta.

“Minha querida Gertrude, você vai ficar admirada, surpresa, desolada ao saber que terrível indisposição eu senti quando você partiu. Mandei chamar um médico e lhe disse: ‘Dê-me um remédio contra o cansaço porque eu estou cansado’. Ele me respondeu: ‘Nunca! Você não precisa de remédio! Se você está cansado, vá para a cama!’ ‘Não’, repliquei, ‘não se trata desse tipo de cansaço que passa quando se deita. Eu estou cansado no rosto.’ Ele ficou muito sério e depois disse: ‘Sim, estou vendo, é seu nariz que está cansado; e isso acontece por que você mete o nariz em tudo’. E eu respondi: ‘Não, não é bem o nariz. Talvez tenha sido um gole de ar’. Então ele fez uma expressão de espanto e disse: ‘Agora estou entendendo: naturalmente você tocou muitas árias em seu piano’. ‘De forma nenhuma, protestei. Nada de árias, mas de alguma coisa que fica entre o meu nariz e o meu queixo’. Aí ele ficou muito sério e perguntou: ‘Ultimamente você tem andado muito com seu queixo?’ Eu disse: ‘Não’. ‘Bem!’ disse ele, ‘isso me preocupa muito. Não sente alguma coisa nos lábios? ‘Claro!’ exclamei. É exatamente isso que eu sinto!’ Então ele ficou mais sério do que nunca e disse: ‘Acho que você andou dando muitos beijos’. ‘Bem’, respondi, ‘na verdade eu dei um beijo numa menininha que é muito minha amiga.’ ‘Pense bem’. disse ele, ‘você tem certeza de que foi somente um?’ Eu pensei bem e disse: ‘Talvez tenham sido onze’. Então o doutor respondeu: ‘Você não deve dar nenhum beijo até que seus lábios tenham descansado bastante’. ‘Mas o que devo fazer’, repliquei, ‘se ainda estou devendo a ela cento e oitenta e dois beijos?’ Nessa hora ele ficou tão triste, mas tão triste, que as lágrimas começaram a rolar em seu rosto. E ele disse: ‘Você pode enviálos numa caixa’. Então eu me lembrei de uma pequena caixa que eu havia comprado em Dover, pensando em poder um dia oferecê-la a uma menininha. Por isso é que eu lhe envio essa caixa depois de ter colocado nela todos os meus beijos. Diga-me se eles chegaram bem, ou se algum se perdeu pelo caminho.”

sábado, 7 de setembro de 2013

Menina que brilhava


(trecho inicial do novo conto)
Garimpo, Carybé




Mariá nem era Mariazinha, era Mariiinha, mesmo e já era sabida, buliçosa que só ela e não é que encontrou pedra, pedra graúda? E aquilo era brilho, era brilho. Mariinha que não fazia nada que prestasse, parecia menino quando corria suja de terra, se enfiava nos buracos, descalça e nem camisa botava, era só a boca de sujeira seca no canto, cabelo bichinhado e sei que mexia e botava a mão onde não podia. O olho, o olho era mais estranho que luzia, ninguém nunca viu ali no interior aquela cor brilhando dentro do olho, cor de pedra. E o cabelo era marrom queimado, daquele sol que se acabava na estrada de chão e fogueava tudo, amorenando menino, areia vermelha de sol que desmaiava povo de fora do interior e caía tudo duro no chão. Mariinha era danada igual menino, Mari-inha, a gente chamava, que nem a mãe entendia como se era isso, só chamava Mariá e pronto, mas o resto chamava assim.

Um dia Mariinha viu uma coisa que brilha e muito graúda, parecia tesouro, coisa que ladrão e garimpeiro não se via e se leva de uma vida para ver. As gentes do garimpo, o pai dela, eles todos fazia de um tudo pra encontrar e bem que tentasse uma pedrinha nos rios, um brilhozinho de pedra, mas foi a menina buliçosa com outro menino da Ponta que viu, quis pegar e não deu, que chegou gente no cavalo e foram embora. E era brilhante e era escondido e sujo de terra, mas brilhava era muito, muito dinheiro. O pai que não acreditava, a mãe ralhou e fez pouco, mas os meninos dizia que tinha pedra brilhante do outro lado do rio, tinha, sim, e que luzia de arder olho de menino. O pai pegou foi a pá de lixo enferrujada, nem tirou o lixo de cima e deu surra em Mariinha que sujou a casa toda. Era para Mariinha parar de falar mentira do que não viu e não andar se enfiando pelos matos, que aquilo lá era coisa de menina, menina ajuda é a mãe em casa, menina faz é bolo igual às irmãs faz, que dasse de comer pra os patos que era uma fome só, lavar a pia, que a casa, aquilo tava uma imundície. Mariinha chorou e limpava o chão e chorava, limpando e chorando e ficou uns dias que não queria ver o pai que não podia.

E ela foi ajudando a mãe, ficou foi muito tempo sem ver o menino da Ponta, que também queria voltar e pegar a pedra mais ela e vender e ficar rico, os dois. Era ir pra o outro lado e pegar a pedra, entrar na fazenda velha que ninguém ia, os meninos miúdos se arrastando por debaixo da cerca pra o arame não cortar, junto daquele hospital que o pai foi quando ficava doente de rim. Se Mariinha atravessasse rio, virasse vento, pulasse cerca de fazenda que o pai deixasse, ela pegava aquele tesouro e dava pra pai e mãe, porque pai e mãe é o que vale na vida, isso é que é. O resto ela dava era pra o povo dali que até a água de beber tinha secado, mais de três anos que não tinha nem verde, nem nada, uma luta pra achar uma manga de pé, era só folha seca que se pisava e chegava estalar de tão seca. Na Ponta também tava assim, o menino dizia, faltava o tudo que não tinha, não tinha pra quem desse.

domingo, 18 de agosto de 2013

Flores raras para inglês ver






O título Flores Raras, novo longa do diretor Bruno Barreto, faz jus à sua proposta estética: é o retrato "raro" do Brasil caricato para inglês/americano ver. Já no início, vemos imagens tipo cartão postal do Rio de Janeiro, ao som de Copacabana, ou outro clássico manjadísimo da bossa nova cantado em inglês-português, e parece que estamos diante da propaganda de algum órgão de turismo do Rio de Janeiro. Quaisquer semelhanças entre essa opção estética de Barreto e a de seu outro filme, Bossa Nova, não são mera coincidência.

Os planos pouco imaginativos do Rio, na verdade, vêm do olhar de uma estrangeira com a sensibilidade da grande poetisa americana Elisabeth Bishop e por isso mesmo, deveriam ser menos lugar-comum. Mas o Brasil tipo exportação não é o único problema. Quase todo o filme de Barreto peca pelos excessos e falta de sutileza e o roteiro entrega o ouro já nos primeiros minutos. Não só o Brasil de Barreto é mastigado, mas as atuações, as falas, a narração, tudo é didático e peca pelos excessos. Os atores dizem tudo o que pensam, sem que haja espaço para a dúvida, a dissimulação e a ambiguidade em nenhum momento. Eles entram em cena e “anunciam” o que sentem e pensam, o que aconteceu ou está para acontecer. Ao fim, o filme é feito de sketches, blocos que contam fatos marcantes reais da vida das personagens, às vezes sem muita conexão uns com os outros. Durante o rompimento com Bishop, por exemplo, Lota entra em depressão e vai parar num hospital psiquiátrico, sem que o espectador acredite, porque o roteirista em nenhum momento “planta” anteriormente uma cena em que a atriz esteja mal, soando inverossímil – principalmente pelo fato do acontecimento ter sido também anunciado pela boca de um personagem. 

Há algumas críticas da mídia especializada à atuação da lésbica “macho” de Glória Pires – no papel de Lota, paisagista brasileira com quem Bishop tem um caso no Brasil – e embora seja uma atriz admirável, também se perdeu na caricatura em algumas cenas. Não sei se seria o caso de culpá-la, pois quem regula a intensidade das emoções é o diretor e não sabemos se ele pediu isso dela.

Os poucos momentos verossímeis são as belas cenas eróticas em que ambas as atrizes principais se entregam verdadeiramente ao papel. Os planos solitários da atriz australiana Miranda Otto, que vive Bishop, escrevendo e buscando inspiração, sua relação com a natureza tropical e exuberante na casa de Lota em Petrópolis, transmitem muita veracidade. Percebe-se que essa relação entre a atriz e aquele mundo “exótico” existiram de maneira genuína – com o Rio mostrado de maneira menos óbvia que as cenas da capital.. A atuação comedida e verdadeira de Miranda Otto, que vive Bishop, são o grande trunfo do filme, ainda que o roteiro mal escrito obrigue-a a dizer ao público, com todas as letras, que é reservada - e não deixe que ele perceba isso na personagem, subestimando-o. São muitos os problemas de roteiro e direção, que não compensam as belas cenas do olhar e dos gestos de Miranda, com a mata atlântica ao fundo e o som de uma boa trilha sonora.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Poema existencial

POEMINHA DO SER


Se eu me dobrar por dentro
sendo o que eu sou
haverei de me perder
do que nunca fui eu.

Se enrolará o grande novelo
que de mim fará o estar em mim
voltando a ser
o que sempre será um.

E na essência de tudo o que há
me faltarão palavras e ideias
na cabeça dentro da grande cabeça
que tudo concebe.

Um poema, involuntariamente, no estilo Whitman

 
       Pedra em homenagem a Walt Whitman, EUA


(Poema publicado na antologia portuguesa Entre o Sono e o Sonho, lançado em março de 2013, no Cassino Estoril, pela Chiado Editora).


DESNUDAMENTO

Quando me expando nas planícies
em todas as relvas
e me deito, lânguida e preguiçosamente
quando flutuo no mundo
e pairo e pairo
sobre todos os homens
mulheres, velhos de boa fé
todas as crianças de mim
quando sobrevôo as criaturas
pensamentos, ruídos de gente e mato
quando sou cada coisa
cada dia, cada sonho
perdido e sombrio
cada arena dura de sangue
quando me estendo nos riachos
todos os riachos
(e sensíveis são os riachos, porque os sinto)
quando sou todas as águas
todos os mares de espuma
todas as formas
quando sou muito além de mim
infinitamente sendo
paradisíaca mulher nua
quando sou tudo o que é
eu sou
eu sou.