domingo, 30 de março de 2008

UM PERFIL










(Perfil assinado por mim no jornal "Correio", 2006, em linguagem e formato mais "padrao"...)

Capoeirista versátil



Mestre Boa Gente, 60 anos, já fez incursões pelo samba, maculelê, rádio e teatro

Mestre Boa Gente desenvolve um trabalho social no Vale das Pedrinhas, ensinando a crianças e jovens carentes:

`Eu aprendo ensinando´

Quem vê o andar gingado de mestre Boa Gente, arrastando chinelos e calças brancas pelo Vale das Pedrinhas, nem imagina que ele possua tantas outras facetas além da boa e velha capoeira. Iniciado desde os 6 anos nos movimentos africanos, Boa Gente conheceu a capoeira em todas as suas vertentes, experimentando diferentes formas de dança e combate. Seus pés calejados já trilharam desde os passos delicados da dança de salão até a brutalidade pujante dos ringues de vale-tudo. E como se não bastasse tanta versatilidade, Boa Gente já fez incursões pelo samba, maculelê, taekwondô, dança afro, rádio, teatro, e o que mais o seu corpo de 60 anos lhe permitir. "A história aqui é longa. É coisa de mais de 30 anos", adverte ele, preparando-se para uma longa entrevista em sua rádio comunitária no Vale das Pedrinhas.

Ali, cercado de alunos carentes do bairro, mestre Boa Gente desenvolve com eles um trabalho social reconhecido no Vale das Pedrinhas e em todos os cantos do mundo. Servindo de tema para um documentário da National Geographic, o dia-a-dia da Associação de Capoeira Mestre Boa Gente já foi exibido para milhões de pessoas ao redor do globo. No terraço de sua casa, em Vale das Pedrinhas, são ministradas aulas gratuitas para mais de 150 crianças, que aprendem com ele os segredos da dança, capoeira, maculelê e até mesmo da locução de rádio, o que comprova a enorme quantidade de conhecimento acumulado. "Eles aprendem um pouquinho de tudo, e aí é que entra a versatilidade: você tem que encontrar o que o outro se adapta melhor", explica ele, deixando óbvio o seu talento para descobrir talentos.

Após as aulas, mestre Boa Gente convida os alunos para participar da elaboração e locução de notícias da rádio comunitária, se inteirando sobre os problemas do bairro onde vivem e conhecendo os princípios da atividade jornalística. "É para tirar a timidez deles nas aulas, aprender a falar", justifica. Criada por ele em 1969, a tradicional Rádio Comunitária de Vale das Pedrinhas divulga notícias gerais e principalmente locais, prestando serviço a toda comunidade. "Aqui é documento, criança que se perde, cachorrinho... se furar um tubo a gente liga para a Embasa", exemplifica ele, enquanto anota a divulgação do enterro de um morador da comunidade.

Atividades diversas

Os trabalhos na rádio e na associação são divididos com o de professor de capoeira dos alunos de uma escola particular, o Colégio São Paulo. Tendo estudado até a 1ª série, mestre Boa Gente acredita que tem aprendido muito com seus alunos. "Eu aprendo ensinando. Hoje, são eles que me ensinam computador", revela modestamente, apontando para um de seus alunos da comunidade.

Pai de quatro filhos, Boa Gente conheceu cedo as artimanhas da capoeira, quando ainda atendia pelo nome de batismo, Vivaldo da Conceição, e vendia nas ruas do interior bananas e mingaus. Na época, ele acabou se mudando de Ibicaraí, "município velho, mas que ninguém conhece", no sul da Bahia, para a cidade de Ilhéus, acompanhando a irmã que acabara de se casar. De Ilhéus para São Paulo, a cidade dos sonhos, seria um pulo, se sua mãe não tivesse exigido que ele fosse para Salvador, local que considerava mais seguro.

Aqui chegando, morador do Calabar, Vivaldo conheceu Mestre Gato, grande capoeirista do bairro, e com ele deu seus primeiros passos e golpes rumo à arte da capoeira. "Naquele tempo, ela era feita na rua, não se fazia em teatro. A capoeira era discriminada, coisa de preto, marginal", conta ele.

Como na rapidez dos movimentos de capoeira, Boa Gente foi se tornando conhecido no meio, e realizou apresentações públicas na academia do famoso mestre Pastinha e na Associação Atlética da Bahia. Com a visibilidade, surgiu seu primeiro convite para o exterior, e lá, nas terras frias da Bélgica, seus golpes de capoeira ficaram marcados entre as manifestações folclóricas de vários países do mundo.

Filho de Ogum

De 1973 para cá, os convites para o exterior não pararam mais: sua capoeira, dança e arte vêm sendo divulgada nos Estados Unidos, em Portugal, Peru, Canadá e, recentemente, no México, onde acaba de receber um convite para reapresentar a peça da qual é protagonista, sobre Zumbi dos Palmares. "Todo ano eu viajo para o exterior. Agradeço a Deus e aos orixás", conta o filho de Ogum, creditando aos convites que recebe à sua versatilidade nata.

Levando a cultura africana aos quatro cantos do mundo, ele já participou de seis documentários estrangeiros, e acaba de voltar de uma viagem a Hollywood, onde ajudou a ensinar capoeira aos dois mais caros atores de artes marciais do cinema americano. "Na primeira vez que fui, fiquei um pouco nervoso. Cair dentro de uma cidade como aquela, sem falar a língua, vindo da periferia de Salvador, do terceiro mundo...", recorda ele, apreensivo. Hoje, a profusão de cartazes, matérias jornalísticas em inglês e fotos no exterior, expostos em sua casa e na rádio comunitária, demonstram que mestre Boa Gente venceu mais essa luta.

Disposto a divulgar a cultura local, ensinando capoeira em várias escolas e universidades do exterior, ele não pensa em morar fora da Bahia. A idade um pouco avançada, assim como o amor pela cultura local, impedem-no de viver no exterior: mestre Boa Gente não saberia viver sem o tempero baiano, o sol do Verão, ou mesmo um bom prato de feijoada. Mesmo assim, seus olhos brilham ao falar das viagens e experiências que viveu, confirmando sua versatilidade e incansável vontade de aprender. Isso porque, nas horas vagas, o capoeirista ainda arranja tempo para estudar inglês, e já fala espanhol com facilidade. "Vou continuar lutando", anuncia o mestre, sempre disposto a dar novos passos na capoeira, na arte e na vida.

sábado, 15 de março de 2008

Uma crônica


Meu Amigo Imortal

Lembro-me dele já nos últimos tempos de faculdade. Tempos distantes, aqueles. Já ao longe avistava sua figura desconjuntada, grossos óculos, cabeludo, levando nos braços três ou quatro livros, desses de capa dura, em grandes letras douradas. Estava sempre atrasado. Andava distraído, atravessava a rua sem mais, olhando os pensamentos perdidos no chão. E era então que ele se aproximava lentamente, às voltas com citações e notas sobre uma última leitura, e preenchia nossas manhãs com autores e títulos ainda sem importância para nós.

Pelos corredores, blasfemava contra repórteres e jornais de grande circulação, atentando para o prazer e a importância de se ler e reler os grandes clássicos. Mas não lhe davam ouvidos. Diziam-no um velho. No entanto, foi a impaciência de sua juventude que o fez se debruçar sobre um conjunto imensurável de obras antigas, tomando Goethe, Proust e Montaigne por amigos íntimos. Perante nosso seleto grupo de futuros jornalistas, ousava declarar que não lhe apeteciam as “novidades”; e citava Borges, em sua visão soturna de que a imprensa veio multiplicando até a vertigem textos desnecessários e fáceis de serem esquecidos.

Os colegas, em vão, discutiam, questionavam o que raios ele estaria fazendo ali. Afinal, em anos de convivência no jornalismo, flagravam-no freqüentemente disperso, alheio às aulas, quando não levantava e declamava em voz grave algum poema de um autor clássico abordado porventura por um professor. Escrevia contos. Quando não os agradava, contava bolinhas de papel sobre a mesa, para em seguida levantar-se e, passo a passo, jogá-las uma a uma no lixo da sala de aula. Era demasiado lento.

Certo dia, no pátio vazio da faculdade, consegui que me mostrasse um de seus contos. Apenas li alguns trechos, que descobri incompreensíveis. Foi quando revelou que nutria há muito o desejo íntimo de ser um imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL). Mais do que isso, ele queria o privilégio de constar em referências, ser lido, relido e lembrado por toda a eternidade. Mas na efemeridade da vida, já anoitecia. Sorri e me despedi.

Eis aqui uma das últimas recordações que guardo do meu amigo. Depois disso, só avistei-o mais uma vez ao longe, lendo as mesmas folhas, que um vento repentino teimava em querer arrancar. Até que, nesses últimos dias, recebi uma triste notícia. É que o seu temível hábito de atravessar a rua distraído custou-lhe a vida. Tinha tudo pela frente, mas esquecera-se de olhar para os lados. Nem sequer chegou a publicar seus contos enigmáticos. Encontraram-no caído, os sonhos desmoronados, os passantes sem conseguir identificá-lo. Morrera anônimo. O que me consola é que, nos últimos tempos, ele deve ter se imaginado, desgostoso, tomando chá na ABL ao lado do Paulo Coelho, ou outros escritores de gosto fácil. Acho que com isso morreu menos frustrado por não ter conseguido o que queria. Além de tudo, será por mim eternamente lembrado. Afinal, já não se fazem mais imortais como antigamente.

Julia Lima

(Crônica/conto publicada em 2003, no jornal da faculdade. Bons tempos.)