O menino e
o louco
Quando
o menino viu a loucura de perto, ele já sabia, porque as crianças
sempre sabem tudo de antemão; ele já sabia, só não sabia explicar
o que aquilo era. Estava perdido no campo, onde não havia nada, para
onde quer que olhasse. Como se a razão houvesse fugido pela terra
seca, sem mato, sem rumo. Então lembrou que precisava encontrar a
casa da avó.
Sempre
que fazia verão, mesmo que no inverno, o menino ia de trem para a
casa da avó. O trem era tão rápido e a casa de pedra, tão
monumental e antiga, e havia uma parreira que lá de cima derramava
sua sombra, depois que ele voltava da piscina natural de água fria.
Havia também o pão de forno da avó, havia a avó e outras avós
emprestadas ao lado, todas esperando por ele com doces nos
vidrinhos. Tudo isso ele tinha para mostrar às outras crianças, mas
faltavam as crianças, porque adulto, adulto ele pensava que nenhum
brincava mais. Até o dia em que ele conheceu o homem louco do outro
lado do campo.
Mas
eu vou começar a história do começo: um dia o menino resolveu
subir o monte, porque queria alguém para brincar. Foi assim que
começou. Ele já conhecia as gêmeas, umas menininhas loirinhas,
cabelos encaracolados, com vestidinhos iguais; duas meninas que
brincavam como meninos, brincavam de verdade. Eram uns três anos
mais novas que ele, e as únicas crianças que existiam ali. Mas para
chegar na casa delas, tinha que subir o monte e passar por umas
plantas espinhentas, muita pedra, até chegar onde não havia mais
verde, nem casas e nem nada, só o casarão das gêmeas que a natureza
esqueceu. O menino já havia estado ali, porque quando se é criança e se
está sozinho, acaba-se descobrindo tudo, tudo. Ele lembrava que
havia uma mãe, loira como elas, que mandara-as entrar e tomar banho.
A brincadeira acabou, e foi a primeira e última vez que ele viu as
gêmeas.
Agora
a casa estava mais velha, empoeirada. Uma casa grande assim, tão
suja!, se aproximou. As florezinhas infantis, outrora
desenhadas na fachada da casa, quase que desapareceram. O
portão azul estava entreaberto, e o menino entrou sem culpa. Parecia não
haver ninguém. Pegou a corrente enferrujada solta e com ela uniu as
duas partes do portão, também enferrujadas. Quando entrou na casa,
notou que tudo se duplicava: eram dois os portões azuis, duas as
marionetes de cada tipo, os brinquedos, pincéis e as telas iguais,
espalhadas. E tudo por fim se repetia em infinitos espelhos, pedaços
de reflexo colados nas paredes encardidas, por toda a parte, sempre
em números pares. Também havia flores de papel duplicadas, pinturas
alegres esmaecidas, mãozinhas de tinta vermelha cor-de-sangue –
seria sangue? - e um cheiro de solvente que contaminava o ar. Parecia
uma casa ideal para uma criança brincar, e logo depois ir embora –
refletiu o menino, no meio daquele caos de cores e sujeira. Ninguém viveria ali.
Notou
que na casa não havia teto, apenas telhas que permitiam os morcegos
à noite e todo o tipo de insetos e pássaros pela casa, que mais
parecia um grande armazém velho. Então ouviu risinhos do quintal.
Entraram as gêmeas e um homem, que rapidamente recuou, sem
que o menino pudesse identificá-lo. As gêmeas o cumprimentaram
timidamente, pareciam tão assustadas quanto ele, que se desculpou
por haver entrado sem pedir. Anestesiadas, as meninas não reagiam, ele
envergonhado quis ir embora, quando notou que o homem o vigiava atrás
da pilastra – e num só gesto, escondeu o rosto novamente. Que
homem estranho!, pensou, considerando-se um homem, não um menino ou
um palhaço. Tinha os cabelos grisalhos compridos, despenteados e
amarrados como os de uma mulher; tinha a barba por fazer, dentes e unhas escuras,
bastante alto e magro, e sendo tão magro, a pele sobrava-lhe no
rosto, como as rugas da avó. As meninas estavam inertes, como se já reconhecessem a situação e os movimentos
do homem. Ele repetira o gesto, agora numa nova pilastra,
aproximando-se dele como de uma presa. O menino estava
entre o medo e o riso, sem saber definir.
- O que faz aqui? - perguntou, cantarolando agudo. Deixava
mostrar o rosto fino, para enxergar melhor o menino. O menino com medo tentou
se explicar, mas o homem se movimentava tão rapidamente, que parecia
não se interessar pela resposta.
-
Desculpe ter entrado - disse baixinho, recuando em direção à
porta. Então o homem, com um pulo à sua frente, impediu sua saída,
como se tivesse aparecido na frente dele por magia.
Lembrou
que as gêmeas gabavam-se, enquanto brincavam com ele, de
ter “um pai mágico”, que conseguia desaparecer e reaparecer,
quando não queria receber uma visita ou ouvir a
mãe falar. “Nosso pai é artista”, orgulhavam-se, apresentando
isso como argumento para alguém se dissolver no ar. O menino não sabia se acreditava
naquelas histórias, mas tinha medo delas.
- Quem é você? - perguntou o mágico. Nunca um
adulto havia falado assim com o menino, como se ele fosse adulto
também, olhando-o nos olhos sem desviar. Agora entre ele e
a porta, o homem o examinava arfando, prestes a comê-lo. O menino
já não mais acreditava em criaturas que existiam unicamente para
devorá-lo, mas por um momento, elas se reavivaram.
O
homem repetiu a pergunta. Para dissimular o temor, o menino
começou a se perder em explicações sobre a casa da avó, o caminho
da casa da avó e a própria avó; é quando dizemos muita coisa ao
mesmo tempo porque, na realidade, não temos nada a dizer. E o homem olhava os movimentos da sua boca, como
se importasse mais a boca do que o que saía dela. E então deu uma
gargalhada inesperada. E eram daquelas gargalhadas de olhos bem
abertos, que assustariam qualquer menino. Deu meia-volta e ordenou
que as gêmeas se vestissem como o combinado, para mostrar ao menino
que tipo de brincadeiras eles faziam. O menino queria ir
embora, mas sabia que era tarde demais para pedir isso. As gêmeas
obedeceram prontamente, de cabeça baixa. Havia algo de triste no jeito delas andarem e olharem, que não antes quando brincaram. Já estavam os três
no quarto a sós - as gêmeas trocavam a roupa com ansiedade -,
mas nem fizeram menção de brincar com o menino naquele momento, ou
depois. Ele perguntou pela mãe, e soube que ela as havia
abandonado. Era uma mãe má, porque não as levou com ela, disseram. Fantasiaram-se com roupas
escuras estranhas, muito maior do que o seu tamanho - provavelmente pertencentes a uma
mulher, pensou o menino. Pareciam dois balões. Nesse instante, o homem as chamou
impacientemente.
Continuou
dizendo ao menino que ia lhe mostrar como é que eles brincavam na
casa, mas ele não entendia que brincadeira era aquela; brincadeira é
quando podemos ser o que queremos, escolhemos o figurino, o lugar, o
tema, tudo – mas o homem é quem decidia pelas filhas, e isso não é
brincar. Tinham que virar estátuas, brincadeira que o menino até
gostava, mas por pouco tempo, senão doíam as pernas. Enquanto isso,
o homem à frente pintava algo no cavalete, e ordenava outras
estátuas, e outras e outras, que as meninas obedeciam sem
pestanejar, nem olhar para o pai.
Nesse
dia o menino chegou tarde à casa da avó, já estava escuro e ela
bradou com ele. Mas ele nem se importou, pois a mente ainda estava
na casa do louco, só o seu corpinho tinha vindo para dormir; pensava
em um jeito de ajudar as amigas, mas não sabia como.
Com
o tempo, o menino passou a visitar o casarão todos os dias, e ficou
surpreso como às vezes loucos podem ser divertidos. Ele fazia umas
performances malucas, vestido com roupas estranhas, maquiagem colorida e uma cartola, e provocava as crianças para que corressem pela casa com
ele, imitando os seus gestos; os quatro riam-se muito juntos.
Depois que ele jogava tinta nas crianças, recolhia-se para desenhar
sozinho - e a elas era permitido usar as cores que quisessem pela
casa. O menino achou incrível, porque quando tinha três anos e
pintou numa parede do quarto a sua família toda feliz em lápis de cera, os pais não sorriram nem um pouco. Já com o louco, não havia restrições
para criar as mãozinhas, bonecos, flores e aves das crianças; a
casa se transformava em uma grande floresta
azul-amarela-multicolorida. A única exceção, e isso as meninas lhe
advertiram bem, era à enorme escultura de gesso coberta por um
lençol num canto da casa. Não poderia ser tocada, sob pena de surra
e outras torturas.
Quando
ficavam juntos no quarto, as gêmeas lhe apresentavam brinquedos
muito velhos e baratos – sinal de que há anos não ganhavam
presentes dos pais, e que Papai Noel nunca existiu. No faz-de-conta
delas, eram professoras ou mães que sempre mandavam que os ursinhos obedecessem, senão levariam surra ou seriam mortos. Não podiam
se mexer, diziam, sob pena de serem mandados embora da escolinha ou da
casa dos papais-ursos, e morreriam tristes e sozinhos.
Mas as brincadeiras acabavam de uma hora para outra, quando o louco
reclamava que a casa estava muito bagunçada e que ele agora queria comer. Uma delas corria para a cozinha e a outra com o
saco de lixo catava tudo pela casa. O fogão era alto e
a menina usava um banquinho de três pernas para cozinhar, que o
menino tentava equilibrar para que não queimassem seus cabelos, que tinham a mesma cor do fogo. Depois da cozinha as crianças tinham direito a uma pequena parte, que as
deixavam quase sempre com fome, mesmo com os doces que o menino
trazia escondido da casa da avó, e que elas guardavam numa caixinha
dentro do armário sem porta. Nessa mesma caixinha, estavam algumas
das cartas que a mãe lhes escrevia, quando não eram interceptadas e
queimadas no quintal pelo pai. As gêmeas não sabiam ler, pois
quando estavam começando a juntar as letrinhas na cartilha, o pai não permitiu que fossem mais à escola; deveriam servir a ele como modelos para sua
arte e domésticas para sua casa. Ao perceber a limitação delas, o menino
leu-lhes algumas cartas. Todas diziam que o pai maltratava a mãe,
que foi necessário fugir dele, e que buscava emprego para que
pudesse levá-las para viver com ela. Não sei se as crianças
acreditaram na mãe – seus olhares tristes pareciam ter banido a
esperança de tudo que existe -, mas o menino encorajou-as a
acreditar que sairiam dali.
O
máximo permitido fora de casa eram os estranhos passeios que a
família fazia, como seguir o louco e a linha do trem, até chegar no
túnel branco por onde ele passava. Levavam tintas e decoravam as
paredes do túnel, com o louco pulando e cantarolando, enquanto
esperavam o som do trem cantar nos trilhos, para saírem
correndo. O menino pensou que a avó não gostaria disso; se a
avó se aborrecia quando o menino chegava sujo de tinta e comida,
imagine se soubesse que um trem de verdade – não aqueles de
brinquedo que ele tinha – poderia devorá-lo em um segundo se
tropeçasse?
Sempre
que o louco voltava do túnel, dizia estar “inspirado” - numa
espécie de fome para pintar e esculpir tudo -, em que um só minuto não
poderia ser desperdiçado, sob pena da musa, mulher
invisível e impaciente, ir-se embora. Então todos se vestiam e o
louco maquiava as crianças como adultos. As roupas
e pinturas faciais das gêmeas tinham de ser sempre iguais, e até
mesmo as posições, em que ambas olhavam-se estáticas, uma como
reflexo do espelho da outra. O menino,
que geralmente só observava, também foi incluído nas brincadeiras certo dia; o
homem pintou-o com batom vermelho, lápis nos olhos e vestia apenas uma
tanga no corpo. O menino dizia que não queria aquilo, mas o louco gritou
que estava na casa dele e que crianças devem obedecer aos adultos – embora o
menino não o visse como um adulto - e que o mataria com esse estilete
aqui se ele não obedecesse. Depois sorriu, como se ameaças de
morte fossem tão divertidas quanto um sorvete.
Eram
muito tristes os momentos em que a mulher inspiradora invisível chegava, porque ela excitava a loucura do louco. Às
vezes um deles não aguentava permanecer estátua, ou uma das meninas queria sair dali para ir rápido ao banheiro, mas o pai não deixava. Num desses dias,
passada meia hora, a menina chorosa afirmou que não aguentava mais
de vontade, e o louco gritou que se calasse, aguentasse e não
sujasse o chão. O menino, que posava no meio das gêmeas
simetricamente dispostas, fantasiado de algo que não era nem homem,
nem mulher – assim como as fantasias que o próprio louco usava -,
tocava de leve o ombro da menina e dizia baixinho que ia passar, ia
passar, mesmo sabendo que vontade de xixi não passa. Quando o louco
terminou de esculpir as três miniaturas, o líquido amarelado se esparramou
pela sala e a menina chorou de verdade, enquanto o
louco ordenava aos gritos que limpasse a imundície que ela fez.
Nesses
dias, as gêmeas choravam baixinho até fechar os olhos, enquanto o
menino acariciava-lhes os cabelos na cama. Depois do dia do xixi, o menino jurou
que salvaria as gêmeas do louco, mesmo sem saber como.
P.S.: O final do conto, só no livro O Homem da Eternidade, a ser publicado muito em breve...até lá!