segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Da moral nazista

                                                                    Família Goebbels


DA MORAL NAZISTA


Há quem acredite que as ideias de Hitler e a alta hierarquia da SS nasceram com eles. Mas elas são mais próprias ao ser humano do que se pensa, e não se restringem hoje aos grupos skinheads ou jovens neo-facistas. Conheço pessoalmente alguns cientistas brilhantes, realmente brilhantes e destacados em vários países do mundo, que falam em “medidas” para diminuir o sofrimento do homem moderno, que vão desde a manipulação de genes para eliminar doenças “desnecessárias” (questão ética a se pensar) até a castração e morte de indivíduos e/ou raças que tragam transtornos maiores e “atrasos” à humanidade.

Num primeiro momento, a questão das ideias nazistas poderá lhe repudiar, já que você, homem/mulher médio ocidental, foi bombardeado com filmes, documentários e todo o tipo de mensagens norte-americanas que revelam apenas uma face do nazismo – muitas vezes, deturpada na essência. Há apenas um pequeno número de documentos que revela de fato do que se tratavam essas questões, como o lúcido documentário Arquitetura da Destruição, além de documentos verídicos deixados pelos membros alemães.

Óbvio que genocídios de nenhuma espécie se justificam, ainda que as mortes sejam num número muito inferior do que anunciam os aliados. Estudar a fundo de onde vieram essas ideias, dentro de uma prática científica rigorosa, pode fazer com que você até entenda como tantos homens e mulheres de raro brilhantismo se renderam a elas. Falo de cientistas, arquitetos, artistas que revolucionaram o conhecimento sobre as raças, o ser humano e a existência, com estudos premiados mundialmente, e que acreditaram que poderiam, sob o comando do premiadíssimo militar Adolph Hitler, construir uma nova humanidade isenta de doenças hereditárias de toda a espécie – o que significava, de início, a castração de certos civis alemães. Importante lembrar que o alemão médio desconhecia a morte e tortura de judeus, ao contrário da igreja católica: a informação era de que aqueles trens amontoados de gente paravam em campos de trabalho forçados, para o bem da Alemanha.

A ideologia nazista não se tratava, como afirma torpemente o senso comum, de criar um exército de homens e mulheres de olhos e cabelos claros; tratava-se de tornar real o mundo perfeito com que todos já sonhamos um dia. Pergunto quem já não idealizou, em algum momento, um lugar livre de toda a sorte de sofrimentos físicos, com homens e mulheres de intelecto e corpos mais ágeis e sagazes? Em algum momento, todos já cogitaram isso – familiares e portadores de doenças hereditárias graves, pessoas com simples déficits de atenção ou atletas de toda a espécie sujeitos a testes de anti-dopping. Se analisarmos os documentos de Josef Mengele, "o anjo da morte" de Auschwitz que se refugiou secretamente no Brasil, encontramos descobertas extraordinárias sobre rejuvenescimento, fortalecimento e estudos das raças, ainda que tenha custado a vida e os órgãos de centenas de judeus. As crianças que sobreviveram aos experimentos, muitas delas gêmeas, contam que Mengele era gentil, lhes oferecia doces e procurava anestesiá-los. Havia piedade em Mengele, mas era preciso sufocá-la em prol do futuro da raça humana, imune a todas as fraquezas; o nazismo era religião.

Era do mundo perfeito que se tratava o mundo de Hitler – mas e os judeus com isso? Quando pensamos no holocausto, o que nos chega são filmes com alemães altos, fortes e sádicos – e o filme-síntese de Spielberg, não por acaso judeu americano, tem sua história centrada no campo de concentração de Amon Goeth, justamente o maior psicopata dentre os altos membros alemães. Claro que essas pequenas deturpações são compreensíveis, sobretudo nos Estados Unidos, terra natal de alguns dos judeus mais poderosos da história em Wall Street. E devemos lembrar que o trabalho desses homens sacrifica, todos os dias, a vida de milhares de pobres civis, salientando que penas graves não justificam outras. A morte do ideal nazista deu lugar a outro tão cruel quanto: a do mercado desregulado, que após o desaparecimento de Hitler, ninguém foi capaz de desafiar. (Ironicamente, a NASA dos Estados Unidos reaproveitariam secretamente os resultados das experiências grotescas que tiveram judeus como cobaias). Mas as razões que levaram a Alemanha a desafiar o poderio dos judeus, o que ela vivia naquele momento, e o homem que era – e representava – Adolph Hitler não pode ser esquecido, sob pena de termos mortes e torturas insandecidas sem explicação, e as coisas não são assim.

Quando Hitler subiu nos seus primeiros púlpitos, já era um homem admirado por toda a Alemanha, e não sem justificativa. Ao contrário dos grandes políticos que estamos acostumados a ver, dispostos a beneficiar-se com enriquecimento e todo o tipo de vantagens, Hitler representava aquilo que mais defendia em discursos. Homem de hábitos simples, soldado, havia sido um sem-número de vezes premiado por bravura, tendo arriscado a vida em combate para salvar companheiros. Esses ocorridos registram seu rígido código moral – disciplinadamente seguido, como manda um bom alemão - até o fim da vida. Aqueles que o nazismo elegeu para os altos cargos também o seguiram, e foram capazes de morrer por essas ideias, o que no mundo ocidental de hoje soa impensável. Magda Goebbels, mulher de um dos membros cruciais do nazismo, não só morreu junto com o marido e o regime, como foi capaz de pentear, vestir e depois envenenar cada um dos seus seis filhos.

A crença religiosa na moral de Hitler começou muitos anos antes, quando a Alemanha de dívidas, inflacionada, percebeu que mais de 50% dos seus cargos administrativos pertencia a judeus alemães. Os números eram alarmantes. Crescia o ódio ao povo eleito, não apenas pela hegemonia do poder econômico, mas pela crença na ausência daqueles valores morais que o regime tanto salientava. Dizia-se que judeus vendiam-se a qualquer preço, tanto quanto os ciganos – e essas foram as raças que Hitler prometeu aniquilar. Ciganos e doentes mentais foram tão perseguidos quanto judeus, mas aos Estados Unidos isso não importa nos contar. A amoralidade parecia a Hitler uma doença hereditária quanto qualquer outra, cujos genes que habitavam essas raças (como se isso fosse possível) deveriam ser exterminados. O processo da purificação humana não passava somente por um embelezamento e fortalecimento físico-psíquico, mas sobretudo pela obediência cega a uma moral incorruptível. Numa era em que pessoas e princípios são leiloados todos os dias, a moral nazista naturalmente ganha clamor entre grupos diversos, ainda que os fins mais grotescos justifiquem os meios.
Hoje observo cientistas trazerem à tona a questão da purificação da raça, o fim de todas as limitações humanas, descortinando possibilidade infinitas; mas a que preço? Pedem que consideremos friamente o futuro da humanidade, isento de todas essas dores que assistimos nos noticiários. “Não considere indivíduos”, dizem, “mas a história de milhões que hão de vir!” Castrando pessoas e depurando genes, eliminamos a esquizofrenia, os doentes bipolares, ou mesmo uma simples miopia, alegam eles. Mas como não pensar em indivíduos, se dentre os judeus nasceu Cristo ou mesmo um Franz Kafka, e com eles um legado tão belo, tão rico que foi eternizado na nossa história? Importante lembrar que Kafka, poucos anos antes, já deixara em sua obra as marcas da dor que o autoritarismo do Estado, da Universidade ou do próprio pai podem causar. O escritor morreria poucos anos antes do regime ser decretado - e jamais sobreviveria a ele -, o que levou ao assassinato de toda a sua família. No mundo perfeito dos cientista-nazistas, seriam aniquilados todos os Kafkas, Fernandos Pessoas e os Van Goghs que hão de vir, por doenças mentais que eles mesmos lhes dariam nome. Certamente também eu seria privada de procriar, por certa hereditariedade que carrego, e começo a imaginar esse “admirável mundo novo” asséptico de tubos de ensaio, em que os olhinhos risonhos da minha bebê de 11 meses nunca teria existido.

E falando em ideologia nazista, como não lembrar dos regimes totalitários de hoje? Como não lembrar daqueles que defendem Cuba como modelo de vida, ainda que Fidel Castro castre (sobrenome sugestivo!) milhares de indivíduos, os torture e mate em nome do bem comum? Eu tremo diante daqueles que pregam em nome do bem alheio, a começar pelos próprios pais; tremo diante daqueles que sabem "o que é melhor para você". Alguém disse certa vez que todo ditador teve uma mãe à altura; a psicanálise nos lembra o quanto a infância e os pais são cruciais na formação do ser. É nesse momento que o gene do nazismo nasce e é injetado no DNA de milhões de crianças. A cada vez que elas desenham nas paredes, quebram louça fina e sujam o chão, volto a acreditar na humanidade novamente. O Cristo polêmico dos evangelhos apócrifos pregava entre os discípulos que, a certa altura, é preciso odiar os seus pais – naturalmente, para se tornar um indivíduo. Provavelmente por isso esses evangelhos permanecem banidos pelas religiões cristãs. O caminho cego das ovelhas começa desde o nascimento, e seus pastores são muitos: autoridades da escola, da religião, do estado, da família, até que ao indivíduo não reste mais a opção de escolher, porque ele sequer reconhece essa necessidade. E antes que os nazistas do mundo percebam, não restará mais humanidade para manipular. Somente o exército frio e limpo do mundo de Huxley.


domingo, 7 de outubro de 2012

Mais um conto fantástico...



O menino e o louco




Quando o menino viu a loucura de perto, ele já sabia, porque as crianças sempre sabem tudo de antemão; ele já sabia, só não sabia explicar o que aquilo era. Estava perdido no campo, onde não havia nada, para onde quer que olhasse. Como se a razão houvesse fugido pela terra seca, sem mato, sem rumo. Então lembrou que precisava encontrar a casa da avó.

Sempre que fazia verão, mesmo que no inverno, o menino ia de trem para a casa da avó. O trem era tão rápido e a casa de pedra, tão monumental e antiga, e havia uma parreira que lá de cima derramava sua sombra, depois que ele voltava da piscina natural de água fria. Havia também o pão de forno da avó, havia a avó e outras avós emprestadas ao lado, todas esperando por ele com doces nos vidrinhos. Tudo isso ele tinha para mostrar às outras crianças, mas faltavam as crianças, porque adulto, adulto ele pensava que nenhum brincava mais. Até o dia em que ele conheceu o homem louco do outro lado do campo.

Mas eu vou começar a história do começo: um dia o menino resolveu subir o monte, porque queria alguém para brincar. Foi assim que começou. Ele já conhecia as gêmeas, umas menininhas loirinhas, cabelos encaracolados, com vestidinhos iguais; duas meninas que brincavam como meninos, brincavam de verdade. Eram uns três anos mais novas que ele, e as únicas crianças que existiam ali. Mas para chegar na casa delas, tinha que subir o monte e passar por umas plantas espinhentas, muita pedra, até chegar onde não havia mais verde, nem casas e nem nada, só o casarão das gêmeas que a natureza esqueceu. O menino já havia estado ali, porque quando se é criança e se está sozinho, acaba-se descobrindo tudo, tudo. Ele lembrava que havia uma mãe, loira como elas, que mandara-as entrar e tomar banho. A brincadeira acabou, e foi a primeira e última vez que ele viu as gêmeas.

Agora a casa estava mais velha, empoeirada. Uma casa grande assim, tão suja!, se aproximou. As florezinhas infantis, outrora desenhadas na fachada da casa, quase que desapareceram. O portão azul estava entreaberto, e o menino entrou sem culpa. Parecia não haver ninguém. Pegou a corrente enferrujada solta e com ela uniu as duas partes do portão, também enferrujadas. Quando entrou na casa, notou que tudo se duplicava: eram dois os portões azuis, duas as marionetes de cada tipo, os brinquedos, pincéis e as telas iguais, espalhadas. E tudo por fim se repetia em infinitos espelhos, pedaços de reflexo colados nas paredes encardidas, por toda a parte, sempre em números pares. Também havia flores de papel duplicadas, pinturas alegres esmaecidas, mãozinhas de tinta vermelha cor-de-sangue – seria sangue? - e um cheiro de solvente que contaminava o ar. Parecia uma casa ideal para uma criança brincar, e logo depois ir embora – refletiu o menino, no meio daquele caos de cores e sujeira. Ninguém viveria ali.

Notou que na casa não havia teto, apenas telhas que permitiam os morcegos à noite e todo o tipo de insetos e pássaros pela casa, que mais parecia um grande armazém velho. Então ouviu risinhos do quintal. Entraram as gêmeas e um homem, que rapidamente recuou, sem que o menino pudesse identificá-lo. As gêmeas o cumprimentaram timidamente, pareciam tão assustadas quanto ele, que se desculpou por haver entrado sem pedir. Anestesiadas, as meninas não reagiam, ele envergonhado quis ir embora, quando notou que o homem o vigiava atrás da pilastra – e num só gesto, escondeu o rosto novamente. Que homem estranho!, pensou, considerando-se um homem, não um menino ou um palhaço. Tinha os cabelos grisalhos compridos, despenteados e amarrados como os de uma mulher; tinha a barba por fazer, dentes e unhas escuras, bastante alto e magro, e sendo tão magro, a pele sobrava-lhe no rosto, como as rugas da avó. As meninas estavam inertes, como se já reconhecessem a situação e os movimentos do homem. Ele repetira o gesto, agora numa nova pilastra, aproximando-se dele como de uma presa. O menino estava entre o medo e o riso, sem saber definir.

- O que faz aqui? - perguntou, cantarolando agudo. Deixava mostrar o rosto fino, para enxergar melhor o menino. O menino com medo tentou se explicar, mas o homem se movimentava tão rapidamente, que parecia não se interessar pela resposta.

- Desculpe ter entrado - disse baixinho, recuando em direção à porta. Então o homem, com um pulo à sua frente, impediu sua saída, como se tivesse aparecido na frente dele por magia.

Lembrou que as gêmeas gabavam-se, enquanto brincavam com ele, de ter “um pai mágico”, que conseguia desaparecer e reaparecer, quando não queria receber uma visita ou ouvir a mãe falar. “Nosso pai é artista”, orgulhavam-se, apresentando isso como argumento para alguém se dissolver no ar. O menino não sabia se acreditava naquelas histórias, mas tinha medo delas.

- Quem é você? - perguntou o mágico. Nunca um adulto havia falado assim com o menino, como se ele fosse adulto também, olhando-o nos olhos sem desviar. Agora entre ele e a porta, o homem o examinava arfando, prestes a comê-lo. O menino já não mais acreditava em criaturas que existiam unicamente para devorá-lo, mas por um momento, elas se reavivaram.

O homem repetiu a pergunta. Para dissimular o temor, o menino começou a se perder em explicações sobre a casa da avó, o caminho da casa da avó e a própria avó; é quando dizemos muita coisa ao mesmo tempo porque, na realidade, não temos nada a dizer. E o homem olhava os movimentos da sua boca, como se importasse mais a boca do que o que saía dela. E então deu uma gargalhada inesperada. E eram daquelas gargalhadas de olhos bem abertos, que assustariam qualquer menino. Deu meia-volta e ordenou que as gêmeas se vestissem como o combinado, para mostrar ao menino que tipo de brincadeiras eles faziam. O menino queria ir embora, mas sabia que era tarde demais para pedir isso. As gêmeas obedeceram prontamente, de cabeça baixa. Havia algo de triste no jeito delas andarem e olharem, que não antes quando brincaram. Já estavam os três no quarto a sós - as gêmeas trocavam a roupa com ansiedade -, mas nem fizeram menção de brincar com o menino naquele momento, ou depois. Ele perguntou pela mãe, e soube que ela as havia abandonado. Era uma mãe má, porque não as levou com ela, disseram. Fantasiaram-se com roupas escuras estranhas, muito maior do que o seu tamanho - provavelmente pertencentes a uma mulher, pensou o menino. Pareciam dois balões. Nesse instante, o homem as chamou impacientemente.

Continuou dizendo ao menino que ia lhe mostrar como é que eles brincavam na casa, mas ele não entendia que brincadeira era aquela; brincadeira é quando podemos ser o que queremos, escolhemos o figurino, o lugar, o tema, tudo – mas o homem é quem decidia pelas filhas, e isso não é brincar. Tinham que virar estátuas, brincadeira que o menino até gostava, mas por pouco tempo, senão doíam as pernas. Enquanto isso, o homem à frente pintava algo no cavalete, e ordenava outras estátuas, e outras e outras, que as meninas obedeciam sem pestanejar, nem olhar para o pai.

Nesse dia o menino chegou tarde à casa da avó, já estava escuro e ela bradou com ele. Mas ele nem se importou, pois a mente ainda estava na casa do louco, só o seu corpinho tinha vindo para dormir; pensava em um jeito de ajudar as amigas, mas não sabia como.

Com o tempo, o menino passou a visitar o casarão todos os dias, e ficou surpreso como às vezes loucos podem ser divertidos. Ele fazia umas performances malucas, vestido com roupas estranhas, maquiagem colorida e uma cartola, e provocava as crianças para que corressem pela casa com ele, imitando os seus gestos; os quatro riam-se muito juntos. Depois que ele jogava tinta nas crianças, recolhia-se para desenhar sozinho - e a elas era permitido usar as cores que quisessem pela casa. O menino achou incrível, porque quando tinha três anos e pintou numa parede do quarto a sua família toda feliz em lápis de cera, os pais não sorriram nem um pouco. Já com o louco, não havia restrições para criar as mãozinhas, bonecos, flores e aves das crianças; a casa se transformava em uma grande floresta azul-amarela-multicolorida. A única exceção, e isso as meninas lhe advertiram bem, era à enorme escultura de gesso coberta por um lençol num canto da casa. Não poderia ser tocada, sob pena de surra e outras torturas.

Quando ficavam juntos no quarto, as gêmeas lhe apresentavam brinquedos muito velhos e baratos – sinal de que há anos não ganhavam presentes dos pais, e que Papai Noel nunca existiu. No faz-de-conta delas, eram professoras ou mães que sempre mandavam que os ursinhos obedecessem, senão levariam surra ou seriam mortos. Não podiam se mexer, diziam, sob pena de serem mandados embora da escolinha ou da casa dos papais-ursos, e morreriam tristes e sozinhos.

Mas as brincadeiras acabavam de uma hora para outra, quando o louco reclamava que a casa estava muito bagunçada e que ele agora queria comer. Uma delas corria para a cozinha e a outra com o saco de lixo catava tudo pela casa. O fogão era alto e a menina usava um banquinho de três pernas para cozinhar, que o menino tentava equilibrar para que não queimassem seus cabelos, que tinham a mesma cor do fogo. Depois da cozinha as crianças tinham direito a uma pequena parte, que as deixavam quase sempre com fome, mesmo com os doces que o menino trazia escondido da casa da avó, e que elas guardavam numa caixinha dentro do armário sem porta. Nessa mesma caixinha, estavam algumas das cartas que a mãe lhes escrevia, quando não eram interceptadas e queimadas no quintal pelo pai. As gêmeas não sabiam ler, pois quando estavam começando a juntar as letrinhas na cartilha, o pai não permitiu que fossem mais à escola; deveriam servir a ele como modelos para sua arte e domésticas para sua casa. Ao perceber a limitação delas, o menino leu-lhes algumas cartas. Todas diziam que o pai maltratava a mãe, que foi necessário fugir dele, e que buscava emprego para que pudesse levá-las para viver com ela. Não sei se as crianças acreditaram na mãe – seus olhares tristes pareciam ter banido a esperança de tudo que existe -, mas o menino encorajou-as a acreditar que sairiam dali.

O máximo permitido fora de casa eram os estranhos passeios que a família fazia, como seguir o louco e a linha do trem, até chegar no túnel branco por onde ele passava. Levavam tintas e decoravam as paredes do túnel, com o louco pulando e cantarolando, enquanto esperavam o som do trem cantar nos trilhos, para saírem correndo. O menino pensou que a avó não gostaria disso; se a avó se aborrecia quando o menino chegava sujo de tinta e comida, imagine se soubesse que um trem de verdade – não aqueles de brinquedo que ele tinha – poderia devorá-lo em um segundo se tropeçasse?

Sempre que o louco voltava do túnel, dizia estar “inspirado” - numa espécie de fome para pintar e esculpir tudo -, em que um só minuto não poderia ser desperdiçado, sob pena da musa, mulher invisível e impaciente, ir-se embora. Então todos se vestiam e o louco maquiava as crianças como adultos. As roupas e pinturas faciais das gêmeas tinham de ser sempre iguais, e até mesmo as posições, em que ambas olhavam-se estáticas, uma como reflexo do espelho da outra. O menino, que geralmente só observava, também foi incluído nas brincadeiras certo dia; o homem pintou-o com batom vermelho, lápis nos olhos e vestia apenas uma tanga no corpo. O menino dizia que não queria aquilo, mas o louco gritou que estava na casa dele e que crianças devem obedecer aos adultos – embora o menino não o visse como um adulto - e que o mataria com esse estilete aqui se ele não obedecesse. Depois sorriu, como se ameaças de morte fossem tão divertidas quanto um sorvete.
Eram muito tristes os momentos em que a mulher inspiradora invisível chegava, porque ela excitava a loucura do louco. Às vezes um deles não aguentava permanecer estátua, ou uma das meninas queria sair dali para ir rápido ao banheiro, mas o pai não deixava. Num desses dias, passada meia hora, a menina chorosa afirmou que não aguentava mais de vontade, e o louco gritou que se calasse, aguentasse e não sujasse o chão. O menino, que posava no meio das gêmeas simetricamente dispostas, fantasiado de algo que não era nem homem, nem mulher – assim como as fantasias que o próprio louco usava -, tocava de leve o ombro da menina e dizia baixinho que ia passar, ia passar, mesmo sabendo que vontade de xixi não passa. Quando o louco terminou de esculpir as três miniaturas, o líquido amarelado se esparramou pela sala e a menina chorou de verdade, enquanto o louco ordenava aos gritos que limpasse a imundície que ela fez.

Nesses dias, as gêmeas choravam baixinho até fechar os olhos, enquanto o menino acariciava-lhes os cabelos na cama. Depois do dia do xixi, o menino jurou que salvaria as gêmeas do louco, mesmo sem saber como.

P.S.: O final do conto, só no livro O Homem da Eternidade, a ser publicado muito em breve...até lá!